quarta-feira, 26 de maio de 2010

Eu e Ederaldo, Ederaldo e eu.

Quando criança em Juazeiro, na década de 70 descobri que um, dos (vários) irmãos da numerosa família do meu pai em Salvador, além de relojoeiro era sambista e que vários artistas de sucesso gravavam as suas músicas. 
Quando eu tinha cinco anos, Ederaldo Gentil foi nos visitar e me deu um cavaquinho de presente. Começou ali, mais do que uma admiração ao tio famoso, uma relação afetuosa muito especial. Eu era uma criança muito chata – os relatos sobre isso, por mais que eu não lembre, são espantosos. E mesmo assim, ele tinha uma paciência enorme comigo e não me tratava como criança. Conversava comigo como se eu fosse adulto. Talvez esse tenha sido o segredo da nossa especial amizade e d'eu ser uma criança legal com ele.

Afinal, ver Mussum no auge dos Trapalhões com o seu grupo Originais do Samba, cantando: “O ouro afunda no mar/ madeira fica por cima/ ostra nasce do lodo/ gerando pérolas finas” (O ouro e a madeira), e saber que aquela canção era do meu tio, o tornava sem sombra de dúvidas um tio mais que especial pra qualquer garoto.



No seu segundo LP, "Pequenino" de 1976, um disco todo autoral, a única excessão era a canção “Peleja do Bem”, composição do meu irmão Tatau.




Com meus 10, 12 anos, comecei a passar as minhas férias com mais frequência em Salvador. Era bem comum Ederaldo ir me buscar pra passar o final de semana na casa dele em Ipitanga (praia do litoral norte da Bahia). O carro dele não tinha som e ele adorava cantar enquanto dirigia. “o mana deixa eu ir/ oh mana eu vou só/ oh mana deixe eu ir/ pro sertão do caicó” era uma das mais cantadas no caminho. Não esqueço também o dia em que ele chegou pra mim e disse: “Luisinho, Roque Ferreira fez um samba bonito pra cacete” e começou a cantar “tramas da vida” (que Roque lançou em compacto) e anos depois, não sei porque, foi trocada de nome para “É preciso ser rocha” num disco de Edil Pacheco.

Mais tarde, quando vim estudar em Salvador, nossos encontros ficaram mais frequentes. Paralelo ao Cravo Negro - minha banda de rock na época - cheguei a fazer alguns ensaios e três shows como músico da banda de Ederaldo. Porém musicalmente, minha cabeça de adolescente era só rock e a dele sambava. Não subi mais ao palco com ele, mas nossos encontros continuaram habituais. Falávamos de música, de novos acordes (era impressionante como Ederaldo, tocando um violão tão simples, compõe canções tão sofisticadas) As vezes ele chegava pra mim e perguntava de “uma pestaninha diferente” e eu ia lá, montar os dedos dele no violão. Não tive a honra de compor com ele, aliás, chegamos sim, a ter uma parceria num jingle publicitário. Era uma música para campanha de um candidato a prefeito de Lauro de Freitas . Compomos ela no meu apartamento da Graça e depois gravamos no estúdio de Felipe Cavalieri, no bairro da Liberdade. Depois de tudo quase pronto, Ederaldo me liga aflito:


- Luisinho?
- Diga, meu tio.
- Estamos com um problema (mesmo do outro lado da linha, eu já podia sentir que ele estava enrolando as tranças imaginárias do cabelo com os dedos. Ele sempre faz isso quando esta preocupado ou pensativo.)
- Que foi?
- O pessoal ta querendo colocar o nome do vice também no jingle.
- E qual o problema nisso?
- É que o nome do vice é Girino!
- Como?
- Girino. Gei-gi-rei-ri-nê-o-nó, Girino!
- Putaquepariu!

E assim ficou: “A hora é essa/ vamos nessa meu irmão / salvar Lauro de Freitas trabalhando com Leão e Girino!”

 Jingle aprovado.

Muitos anos depois, numa das minhas primeiras idas pro Rio de Janeiro, segui na estrada ouvindo um disco de Ederaldo. Foi  bem marcante chegar na cidade maravilhosa ouvindo “Rio das minhas ilusões” - em que ele relata o tempo dele lá, com saudade de casa e das diferenças entre as cidades -  “banana dágua é nanica/ tangerina é mexerica/ sinto falta do luar”.  Eu pude entender bem aquela canção. Aliás, ele sempre foi um compositor de escrever em primeira pessoa, visceral, de se expor mesmo. Seus medos, suas saudades, dores e amores. Dificilmente há uma canção escrita como observador. Ele chegou ao ponto de cantar os números do seu CPF e RG, como fez na canção “Identidade”.
“Rio das minhas ilusões” mesmo, é uma carta que ele musicou após escrever: “12 de março chuvoso de 73/ que esta lhe encontre em gozo de felicidade...”. Assim como “Rose”, feita para irmã.

Só com o tempo fui perceber o quanto dele há em mim, que aquela afinidade de criança não era por acaso e nem só pelo parentesco.

Mês retrasado, encontrei com Jaime Sodré num evento sobre “música e tecnologia”. Depois do chato debate, fomos pra um canto eu, ele, Letieres Leite e Marcionílio ter um papo informal sobre “música e candombleria”. Jaime, mais um dos meus ídolos de infância (papo pra  um outro texto), começou a falar - com toda maestria que os deuses lhe deram - sobre a ligação das melodias de Ederaldo com o candomblé. Nos explicou cada um dos significados daquelas linhas melódicas, traduzindo aquele quase “código morse dos escravos” contido lá nos berêquetês do meu tio. Antes disso ele havia elogiado o Dois em Um, me falou que tava sabendo dos meus sambas e no final de quase uma hora de conversa, ele chegou pra mim e disse (como quem conta um segredo):

- Luisinho, você tem que gravar uma música do seu tio.

Bem sabia ele que eu já queria fazer isso, e muito.

Semana passada gravamos uma primeira versão, ainda demo, de “Compadre”, música de Ederaldo, registrada no "Pequenino" de 1976, composta pro seu amigo, empresário e claro, compadre: Paulo Nei.

A gravação que fiz com o Dois em Um,  pode ser ouvida aqui: http://youtu.be/rhTwd7KsR6I 

"Repare a maré/ tem horas de enchentes tem horas vazantes/ Assim como a lua vem quarto crescente, vem nova, vem cheia, vem quarto minguante/ Como você vê tudo enfim se transforma/ E o amor não é uma exceção/ Procure ser forte e ter esperança/ Que aparecerá uma nova ilusão" (Ederaldo Gentil)

3 comentários:

Irena disse...

Luisão, adorei ler esse relato sobre sua relação com Ederaldo Gentil. Só de lembrar de "O ouro e a madeira" deu uma emoção boa, antiga. Bacana! Bjs pra vc, Irena

Humberto Barros disse...

Que maravilha meu irmão. Emocionante!

Humberto

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.